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  • Foto do escritorTiago Silva

Vamos falar (a sério) de Ritalina e Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção


Recentemente o PAN tomou a iniciativa de apresentar na Assembleia da República projetos de resolução relativamente à prescrição de ritalina. Segundo o PAN, o metilfenidato (conhecido popularmente como Ritalina) e a atomoxetina são prescritos em excesso para o tratamento da Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA). A preocupação do PAN incide sobretudo nas crianças com menos de 6 anos de idade dizendo que o metilfenidato “não deve ser utilizado em crianças com menos de seis anos (…) as próprias bulas do medicamento dizem exatamente isso, que a segurança e a eficácia não foram claramente estabelecidas neste grupo etário. Não há evidências empíricas nem da sua eficácia, nem dos seus resultados a longo prazo (…) Estamos aqui numa lotaria, a medicar cada vez mais as crianças.

Este tipo de afirmações mostra desconhecimento dos princípios e a razão da existência da prescrição off-label.


O que é a prescrição off-label?

A prescrição off-label surge quando um determinado medicamento não foi ainda aprovado pela entidade reguladora para ser usado da forma que o médico pretende. Neste caso, a indústria farmacêutica produtora da ritalina e da atomoxetina não entregou às agências reguladoras do medicamento estudos clínicos que determinem a existência de um perfil de risco-benefício favorável para estes medicamentos em crianças com menos de 6 anos de idade. No entanto, isso é extremamente frequente na pediatria.

Resulta da falta de investigação neste grupo etário devido a problemas técnicos, éticos e científicos, para além desta população não ser uma prioridade em termos financeiros para a indústria farmacêutica. Assim, ficamos com um grupo etário que necessita de diversos tratamentos, mas para os quais é escassa a investigação farmacológica. Se nos limitássemos a seguir o que está na bula do medicamento, as crianças seriam altamente prejudicadas. Não só no que diz respeito à ritalina, mas à utilização de anti-histamínicos, antibióticos, bombas inalatórias para a asma, etc.

Nos cuidados intensivos pediátricos, cerca de metade dos medicamentos utilizados são em regime off-label. Em diferentes contextos de saúde, a utilização de medicação off-label nos recém-nascidos e nas crianças varia entre 23-60%. E mesmo os incentivos institucionais recentes para aumentar a investigação na área pediátrica não tem levado à diminuição da utilização destes medicamentos em regime off-label. É uma realidade que dificilmente mudará. Não é má prática médica. Não significa que os medicamentos utilizados em off-label são prescrições indevidas. Significa que não temos informação (por diversas razões), sobre o impacto da utilização desses medicamentos, cabendo aos MÉDICOS decidir se medicam ou não as crianças e AVALIAR o impacto dessa medicação. É esta realidade que os responsáveis do PAN não compreenderam.


A perturbação de hiperatividade e défice de atenção não é doença moderna…

Existe o mito que a PHDA é uma doença da modernidade. Que a PHDA está a aumentar de forma dramática. Que a causa desse aumento é um sobrediagnóstico da doença em crianças que são saudáveis. Que as crianças não são doentes, são é mal-educadas ou incompreendidas. Que a culpa do “excesso” de medicalização destas crianças é provocada pela pressão exercida pela escola, pelos pais e pelo facilitismo dos médicos em prescrever medicação.

Isto não é verdade na maioria dos cenários avaliados. Primeiro, a PHDA tem um componente genético importante. Estudos de famílias, de gémeos e crianças adotadas demonstraram que a PHDA tem uma herdabilidade que ronda os 74%.

Se tem um componente genético importante poderemos perguntar, dadas as limitações que representa para a aprendizagem e socialização, porque é que não foi eliminada do “pool” genético através da seleção natural. Na realidade, alguns estudos levantam a hipótese de que no tempo em que éramos caçadores-recoletores, pessoas com PHDA não tinham grandes “limitações” em comparação o resto da tribo. Aliás, até poderá ter sido positivo, havendo evidências de ter sido seleccionado positivamente principalmente em populações nómadas (artigo e artigo). No entanto, estas vantagens parecem desaparecer no contexto de uma população sedentária, com métodos de ensino diferentes, estilo de vida diferentes e desafios sociais diferentes. Ou seja, o ambiente não causou o aparecimento da PHDA, mas as crianças com PHDA estão relativamente desajustadas a este novo meio ambiente. Apesar disso, existe alguma evidência que as crianças que sofrem de PHDA têm algumas vantagens mesmo neste novo contexto social, dado que parecem manifestar uma maior criatividade (artigo, artigo, artigo e artigo) o que eventualmente nos pode indicar que algumas profissões serão mais adequadas para pessoas com este problema.

Em termos contemporâneos, o primeiro exemplo da descrição de uma perturbação semelhante à PHDA foi feita num livro publicado por Weikard Melchior Adam em 1770-75. Há mais de 245 anos. Descrevia crianças e adultos inatentos,que se distraíam com facilidade, com falta de persistência para realizar tarefas, hiperativas e impulsivas. Semelhante à descrição da PHDA que fazemos hoje em dia.

Em 1798, Sir Alexander Crichton, na sua série de três livros intitulados “Uma investigação sobre a natureza e a origem da perturbação mental”, descreve uma doença caracterizada pela dificuldade em manter a atenção, uma predisposição à distração, inquietação e possivelmente algum tipo de impulsividade. Mais uma vez, semelhante à definição da PHDA (embora sem o componente de hiperatividade). Crichton até reconheceu a natureza do distúrbio e entendeu que isso poderia ser devido a uma disfunção neurológica.

Em 1844, o médico alemão Heinrich Hoffmann criou algumas histórias infantis ilustradas, incluindo “Fidgety Phil” (“Zappelphilipp”), que hoje em dia são consideradas uma alegoria popular para crianças com PHDA, dado que os livros descreviam com bastante clareza os típicos problemas de uma criança com esta perturbação. Isto serve para demonstrar que, no mínimo, o Fidgety Phil aponta para a existência de problemas comportamentais semelhantes à PHDA há cerca de 165 anos, numa sociedade muito diferente da nossa, sem TVs, iPods ou videojogos para atribuir a culpa.

Em 1902 o pediatra Britânico George Still diagnostica pela primeira vez 20 crianças com PHDA, descrevendo-a como “um defeito do controlo moral da criança“. Still referia que estas crianças tinham dificuldade em controlar os seus comportamentos, apesar de continuarem a ser crianças inteligentes.

Em 1937, Charles Bradley, tentou identificar alterações cerebrais em crianças com PHDA recorrendo a peumoencefalogramas. Verificou que as crianças após o procedimento ficavam com muitas dores de cabeça. Bradley tentou minorar este desconforto recorrendo à benzadrina, uma anfetamina. A benzadrina não tinha qualquer efeito na dor de cabeça, mas levou a melhorias dos sintomas nestas crianças em termos de comportamento, concentração e aprendizagem. Ou seja, o primeiro fármaco para o tratamento da PHDA foi encontrado por engano.

Bradley posteriormente iniciou um estudo sistemático em 30 crianças no seu hospital e observou alterações notáveis no comportamento das crianças:

 “A mudança de comportamento mais espetacular provocada pelo uso da benzedrina foi o desempenho escolar notavelmente melhorado em aproximadamente metade das crianças”.  As crianças “estavam mais interessadas no seu trabalho e realizavam-no com mais rapidez e precisão”.

Além disso, algumas diminuições na atividade motora foram observadas nas crianças que também “ficaram emocionalmente subjugadas sem, no entanto, perderem o interesse pelo ambiente”. Tal como nós, hoje em dia, ficamos algo perplexos como é que um estimulante pode acalmar uma criança com PHDA, também Bradley referiu na altura:

“Parece paradoxal que uma droga conhecida como estimulante produza um comportamento moderado em metade das crianças. Deve ter-se em mente, entretanto, que porções dos níveis mais altos do sistema nervoso central têm como função a inibição, e que a estimulação dessas porções pode, de facto, produzir o quadro clínico de atividade reduzida através do aumento do controlo voluntário”.

Embora Bradley e os seus colegas tenham publicado estas descobertas em revistas proeminentes da época, não tiveram grande influência sobre a investigação e a prática médica durante pelo menos 25 anos.  Possivelmente devido à ampla influência da psicanálise na época e à suposição de que as perturbações comportamentais não teriam base biológica e seriam tratadas apenas com intervenções psicológicas. A ideia de que estas patologias devem ser abordadas apenas com psicoterapia ou priorizando a psicoterapia tem quase 100 anos. Não resultou.

Chegamos à Ritalina. Desenvolvida em 1944 por Leandro Panizzon, o cientista testou o fármaco em si próprio e na sua esposa, Rita (prática comum na época). Embora sem grande efeito em Panizzon, Rita tomou o estimulante para se preparar para os jogos de ténis e melhorou bastante o seu desempenho. Em homenagem a Rita, Panizzon chamou o fármaco de “Ritalina”. Foi aprovada em 1955, há mais de 60 anos, e era utilizada para várias condições que nada tinham a ver com a PHDA como depressão, letargia e narcolepsia. Só mais tarde se percebeu que era eficaz no tratamento da PHDA, sendo o medicamento base para o tratamento desta perturbação.

Como se percebe, o conceito de PHDA é muito antigo. Apesar disso, só em 1968 foi descrita na segunda edição do manual da DSM, “oficializando” esta perturbação. Ao longo do tempo, o diagnóstico tem sofrido alterações à medida que mais conhecimento vai sendo adquirido sobre este problema. No DSM-III, houve um desvio do foco da hiperatividade para o défice de atenção, tendo sido descrito o défice de atenção com e sem hiperatividade. Essa mudança foi polémica e no DSM-III-R houve novamente alterações, tendo ficado descrita a “perturbação de défice de atenção-hiperatividade” e a “perturbação de défice de atenção não especificada”. No entanto, a “perturbação de défice de atenção-hiperatividade” enquadrava vários subtipos diferentes entre si. Assim, no DSM-IV a perturbação foi dividida em três subtipos: o subtipo em que predominava o défice de atenção, outro em que predominava a hiperatividade e o terceiro tipo em que os dois estavam presentes de forma importante.  No DSM-5, a última revisão dos critérios de diagnósticos, houve algumas alterações menos dramáticas que nas revisões anteriores, mas que possivelmente irá alargar o número de crianças diagnosticadas com PHDA. Por exemplo,  na área funcional, a presença da PHDA precisa apenas de “reduzir a qualidade do funcionamento social, académico ou ocupacional”, em vez de exigir que tal alteração seja “clinicamente significativa”.


A prevalência de PHDA está a aumentar?

Na realidade, ao contrário do que tem sido transmitido na comunicação social, tal não parece estar a acontecer. Como falamos relativamente ao autismo, a razão do suposto aumento parece relacionado com as alterações dos critérios de diagnóstico e maior sensibilidade ao diagnóstico desta patologia.  É consensual que a PHDA se manifesta nas diferentes culturas, em aproximadamente 5% a 6% das crianças e 2.5% dos adultos, sendo mais comum no sexo masculino com uma proporção de 2:1 nas crianças e de 1.6:1 nos adultos (artigo e artigo). As taxas de prevalência alteram‑se significativamente em função daquilo que é perguntado e das técnicas de recolha de dados utilizadas. As variações chegam a ir dos 2% aos 18%. No entanto, quando os fatores confundidores são ajustados (por exemplo, padronizando os critérios de diagnóstico), existe uma constância da prevalência de PHDA na ordem dos 5%. (artigo e artigo). Por exemplo, como podemos ver pelos questionários do CDC, a prevalência tem-se mantido relativamente constante, sujeita a pequenas variações.




Se os investigadores não tivessem feito ajustes ao questionário NSCH realizado em 2016 (a verde) para poderem comparar com os questionários anteriores, então iríamos assistir a um aumento da prevalência de PHDA para os 9.4%. Isto é para perceberem a importância que os critérios de diagnóstico ou mesmo as perguntas que são feitas aos pais e profissionais de saúde têm na estimativa da prevalência de determinadas doenças. Isso não significa que a doença esteja a aumentar, que haja uma epidemia relacionada com fatores ambientais. Muitas vezes basta haver mudanças de critérios ou das perguntas colocadas.


Avaliando a posição do PAN

O PAN apresentou três projetos de resolução apresentados à Assembleia da República. (1, 2, 3), que vamos analisar. Referem que a PHDA “encontra-se recorrentemente associado à prescrição de medicação como o “Concerta”, a “Ritalina” e o “Rubifen”, medicamentos que têm em comum o cloridrato de metilfenidato, que é uma substância química utilizada como fármaco estimulante leve do sistema nervoso central, mecanismo de acção ainda insuficientemente explicado, principalmente no que diz respeito aos efeitos de longo prazo.

Vamos ver a evidência sobre a eficácia da medicação…

Como referido anteriormente, o metilfenidato é um medicamento aprovado há mais de 60 anos. Não é algo novo e existem décadas de investigação sobre este fármaco. Obviamente a que a investigação existente não é perfeita. Pode e deve ser melhorada. Em 2016, os problemas da investigação na área foram levantados após a publicação de uma revisão da Cochrane bastante controversa sobre as opções farmacológicas para o tratamento da PHDA. A revisão concluiu que a medicação é eficaz, mas a qualidade da evidência é baixa ou muito baixa e os estudos tem duração curta (12 meses). Foram escritos alguns artigos com críticas relevantes à revisão Cochrane, referindo as falhas metodológicas importantes que menorizou a eficácia dos medicamentos para controlo da PHDA. Citando um desses artigos:

Em resumo, a inclusão e exclusão incorretas de estudos e a avaliação injustificada do risco de viés levou a resultados que contradizem décadas de evidências de ensaios clínicos randomizados. Uma vez que estudos randomizados de longo prazo são impossíveis e indisponíveis devido a limitações éticas, análises recentes de registos fornecem as evidências mais convincentes sobre os benefícios a longo prazo do metilfenidato. Esses estudos indicam, por exemplo, que o tratamento com metilfenidato tem efeitos benéficos em termos de desfechos distais importantes que vão além do controlo dos sintomas, como redução da comorbilidade, uso e dependência de substâncias, visitas relacionadas com traumas às salas de emergência e mortalidade. Além disso, na ausência de efeitos clinicamente relevantes das opções de tratamento não farmacológico nos sintomas centrais da PHDA, uma desvalorização dogmática do tratamento atualmente mais eficaz não é útil nem para a ciência nem para os doentes.

Em 2018 foram publicadas duas meta-análises importantes sobre o tema. Uma avaliou a utlização de metilfenidato e a melhoria da performance académica,contabilizando três décadas de investigação. Demonstrou que o metilfenidato melhora a produtividade académica (principalmente a nível da matemática), e tem um impacto ainda maior no controlo dos sintomas associados ao PHDA. Os efeitos não são espetaculares, mas são reais e palpáveis.  Outra meta-análise publicada no The Lancet, refere o seguinte:

“Os nossos resultados representam a base mais abrangente de evidências disponíveis para informar doentes, familiares, médicos, criadores de diretrizes e políticos sobre a escolha de medicamentos para PHDA em todas as faixas etárias. Levando em consideração tanto a eficácia quanto a segurança, as evidências desta meta-análise dão suporte ao metilfenidato em crianças e adolescentes e anfetaminas em adultos, como medicamentos preferenciais de primeira escolha para o tratamento de curto prazo. Novas investigações devem ser financiadas com urgência para avaliar os efeitos a longo prazo dessas drogas.”

Portanto, este apontamento do PAN está correto até certo ponto. Como em muitas áreas da ciência, é necessário melhorar o conhecimento. Para já temos alguns estudos preliminares demonstrando que a utilização de metilfenidato têm um impacto a nível cerebral dependente da idade em que é iniciado – quanto mais novo, maior o impacto (artigo, artigo). No entanto, os estudos que existem são estudos DOE, que avaliam resultados sem grande interesse prático em termos clínicos. São necessários estudos de longo prazo para verificar a eficácia e consequências da medicação. Essa falha é reconhecida. O estudo ADDUCE será o primeiro estudo clínico a ser realizado para colmatar essa falha.


Mas estamos a medicar excessivamente as crianças?

O PAN refere que “…em Portugal, 23.000 crianças estão medicadas para a perturbação da hiperactividade com défice de atenção.” (…) “”…de acordo com estudos realizados pelo Infarmed, a utilização do metilfenidato apresenta uma tendência de crescimento. O metilfenidato passou a ser comparticipado em 2003 e a atomoxetina em 2014.” (..) “De acordo com o mesmo estudo, as crianças portuguesas até aos 14 anos estão a consumir mais de 5 milhões de doses por ano de metilfenidato, sendo que o grupo etário dos 10 aos 14 anos foi o responsável pelo maior consumo desta substância, cerca de 3.873.751 doses. Ao grupo etário entre os 0 e os 4 anos de idade foram administradas 2900 doses de metilfenidato, tendo sido no grupo etário dos 5 aos 9 anos administradas 1.261.933 doses.

Primeiro, não é possível avaliar, recorrendo a estes números, se existe ou não sobreprescrição ou sobrediagnóstico da doença. É como dizer que o aumento da utilização de terapia ocupacional por parte de crianças autistas demonstra a existência de um sobrediagnóstico do problema. Ou um aumento da utilização de consultas de psicologia pelas crianças com PHDA. Ou aumento de prescrições de óculos nas crianças míopes. Podem existir mais diagnósticos por existir mais consciencialização e sensibilidade para detetar e tratar determinada doença. Pode existir aumento de medicação porque as crianças não melhoraram com acompanhamento psicológico de forma isolada.

Agora, tendo em consideração que a PHDA é um espectro e algumas crianças se encontram numa zona cinzenta, é possível que a pressão de pais e professores e mesmo os médicos “empurrem” essas crianças para o diagnóstico de PHDA. Mas dificilmente será algo representativo. No entanto, vamos analisar os números:



Se virmos na imagem superior e como o próprio PAN refere, a prescrição de metilfenidato nas crianças entre os 0 e 4 anos representa 0.04% das crianças medicadas, valores de 2014. Ou seja, representam um número altamente residual, o que dá alguma confiança no trabalho desenvolvido pelos médicos relativamente à contenção na prescrição de metilfenidato nesta faixa etária. Depois, olhando para imagem abaixo, da autoria do Público, o que verificamos neste últimos 3 anos é uma estabilização do número de prescrições dos medicamentos para tratamento da PHDA.  Alguém que explique o drama levantado relativamente à prescrição do metilfenidato em crianças com menos de 6 anos. E onde está o aumento galopante de prescrições deste tipo de medicação nas restantes faixas etárias.

Paradoxalmente ao que foi argumentado pelo PAN, na Europa parece existir uma subprescrição destes medicamentos. Esta subprescrição aparenta ser uma resposta ao excesso de prescrição nos Estados Unidos, estando associado a um medo exagerado dos efeitos adversos da medicação e a um exagero da eficácia das intervenções não farmacológicas. Então, de acordo com estes dados, o PAN deveria estar preocupado com o acesso das crianças à medicação do que propriamente com um excesso de medicalização das crianças.


Medicar em crianças com menos de 6 anos…sim ou não?

O PAN refere que “Segundo o Infarmed, nomeadamente conforme resulta das bulas do “Rubifen”, “Ritalina” e “Concerta”, o metilfenidato é indicado como parte de um programa de tratamento abrangente para a PHDA em crianças com idade igual ou inferior a 6 anos quando as medidas tomadas para a resolução deste problema se revelarem insuficientes. Consta inclusive que o metilfenidato não deve ser utilizado em crianças com menos de 6 anos de idade, pois a segurança e a eficácia não foram estabelecidas neste grupo etário. Todavia apesar das recomendações, esta substância está a ser prescrita e administrada a crianças com idade igual ou inferior a 6 anos pelo que consideramos essencial que se promovam campanhas de informação e sensibilização dirigidas aos profissionais de Saúde por forma a não administrar o metilfenidato ou atomoxetina a este grupo etário.

Refere ainda que “Os folhetos referem ainda expressamente que estes medicamentos não se destinam a ser utilizados como tratamento para a PHDA em crianças com menos de 6 anos de idade, uma vez que a sua segurança e eficácia não foram estabelecidas neste grupo etário.

E mais importante, diz que ““Várias directrizes europeias foram recentemente publicadas sobre o tratamento de Perturbação de Hiperatividade com Défice de Atenção aplicadas à prática clínica Europeia, compiladas em 2017 pelo Instituto para PHDA: Orientações Clínicas Europeias da Sociedade Europeia para a Psiquiatria da Criança e do Adolescente (ESCAP) para HKD, As diretrizes do Instituto Nacional de Excelência em Saúde e Assistência (NICE) e As diretrizes da Associação Britânica de Psicofarmacologia”.  Sobre o tratamento de Perturbação de Hiperactividade com Défice de Atenção (PHDA) em crianças com menos de 6 anos, estas entidades adoptam posições consensuais sobre a prioridade que deve ser dada a intervenções psicológicas e ao treino dos pais para lidar com a situação de forma continuada, a menos que deficiências significativas persistentes justifiquem a revisão do especialista.”

Já falamos acima da razão da prescrição off-label.  E evidentemente que a utilização do metilfenidato em qualquer idade deve ser bem ponderada, em particular em crianças em idade pré-escolar por ser menor a experiência. Contudo, existem diversos estudos que parecem provar a eficácia e segurança nessas crianças. Não nos podemos esquecer que a PHDA tem sérias consequências que são transversais à vida da criança e não só do ponto de vista escolar. O número acrescido de acidentes, por exemplo, é um desses aspetos. Como podem ver na figura abaixo, o risco está aumentado em todos os tipos de ferimentos avaliados:



Um dos estudos mais conhecidos a avaliar a prescrição de metilfenidato em idade pré-escolar tem o acrónimo PATS (preschool ADHD Treatment Study – 1,2,3) mas atualmente há mais de uma dezena de estudos sobre o assunto. O PATS estudou 303 crianças entre os 3 e os 3 anos e meio. O estudo tinha um desenho complexo mas deu informação importante ao demonstrar a eficácia do metilfenidato. A eficácia foi menor nas crianças com idade pré-escolar mas limitações de dosagem poderão estar implicadas. Como em todas as farmacoterapias uma avaliação cuidadosa do risco-benefício é necessária. A decisão de tratar e como fazê-lo resulta de um diálogo informado e aberto entre o médico, o doente e a sua família. A utilização do metilfenidato em crianças em idade pré-escolar é excepcional, como vimos acima, mas a sua proibição iria privar um conjunto de crianças de uma arma terapêutica que poderá ser essencial ao seu bem estar.

Nenhuma das guidelines referidas acima pelo PAN dá indicações para a proibição ou limitação do ato médico no que diz respeito à prescrição desses fármacos, ao contrário do que é o seu objetivo. A compilação realizada em 2017 para a PHDA por parte do instituto para a PHDA não faz uma transcrição correta das guidelines, pelo que devem ser consultadas as fontes originais. Por exemplo, relativamente às guidelines da NICE, refere que a medicação não é recomendada em crianças em idade pré-escolar, quando as guidelines referem que a medicação não deve ser oferecida “a qualquer criança menor de 5 anos sem uma segunda opinião especializada de um serviço de PHDA com experiência na gestão de PHDA em crianças pequenas.” O que é bastante diferente.

Quanto às diretrizes da Associação Britânica de Psicofarmacologia, publicadas em 2014, os critérios são ainda mais alargados. A medicação é prioridade perante doença grave, não dependente da idade. Uma nuance fundamental que passou ao lado do PAN:

“Todas as crianças com PHDA grave devem receber tratamento farmacológico. Além disso, considere o tratamento farmacológico para crianças com sintomas moderados de PHDA que não responderam a intervenções psicológicas.


A primeira linha de atuação deverá ser exclusivamente psicológica?

O PAN diz o seguinte: “É igualmente importante a promoção de campanhas de informação e sensibilização dirigidas à população em geral sobre a PHDA, contribuindo para o esclarecimento aprofundado e alargado desta patologia, dos seus sintomas e modos de intervenção, e de campanhas de informação e sensibilização dirigidas à população em geral e, em especial aos profissionais de saúde, sobre o diagnóstico, prescrição e administração de metilfenidato ou atomoxetina, alertando-os para a importância da intervenção psicológica como tratamento de primeira instância.”

Os estudos habitualmente demonstram que a associação de psicoterapia com medicação atinge melhores resultados que as terapias isoladas. Até é possível que a associação de ambas as terapêuticas leve à utilização de menores doses da medicação e à necessidade de um menor número de consultas de psicoterapia.

A maior pesquisa científica em relação a linhas de atuação distintas é o Multimodal Treatment (MTA). A investigação avaliou as seguintes estratégias em crianças com 7 a 10 anos, no espaço de 14 meses:

  • Só medicação (incluindo procurar o fármaco e a dosagem ideais para cada criança, contendo consultas mensais de farmacoterapia).

  • Só um intenso programa comportamental e psicoterapêutico, o qual incluía intervenções em casa e na escola.

  • Uma combinação das duas primeiras estratégias (farmacoterapia mensal e programa comportamental e psicoterapêutico incluindo escola e casa).

  • O tratamento comum nos serviços de saúde primários (medicação com visitas esporádicas).

Resultado: A associação de ambas as intervenções foi a que obteve melhor resultado, com sucesso de 68%. Seguiu-se a farmacoterapia intensiva (56%), tendo a intervenção comportamental um registo de sucesso de 34% e os serviços da comunidade com 25% de sucesso. Verificou-se também que 25% das crianças que faziam apenas o programa comportamental tiveram que ser medicadas antes do término dos 14 meses do estudo.

Ou seja, neste estudo a medicação foi superior à psicoterapia e muitas crianças não medicadas tiveram que o ser posteriormente. Uma meta-análise publicada em 2017 parece confirmar isso. Mesmo em crianças pré-escolares, verifica-se que a medicação poderá ser superior à intervenção psicológica isolada, no entanto os estudos existentes nesta área são muito limitados para tirar qualquer tipo de conclusão nesse sentido. Isto não serve para menorizar a importância da psicoterapia mas para salientar que, mais uma vez, a orientação das crianças deve ser feita caso a caso, de acordo com a avaliação do terapeuta e não por decreto.  O que não parece haver grandes dúvidas é que a combinação de medicação mais intervenção psicológica e educacional consegue obter os melhores resultados nas crianças com PHDA. A própria American Psychological Association valida a utilização da medicação e, algo importante para os decisores políticos, é um medicamento custo-efetivo.


Recorrer a falácias da autoridade

Em vez de falar com os profissionais de saúde sobre o tema, o PAN recorre a falácias de autoridade, citando o que alguns profissionais de saúde disseram em jornais e revistas. Para além disto não ter qualquer valor científico, o PAN fê-lo de uma forma desonesta, dizendo que “Perante o aumento da utilização de metilfenidato, vários médicos e psicólogos têm reconhecido publicamente diagnósticos errados e prescrições indevidas. A título de exemplo, o neuropediatra Nuno Lobo Antunes admite receber muitas crianças “medicadas de forma errada para o problema errado”.

O neuropediatra Nuno Lobo Antunes, que assina este artigo e deu uma entrevista no canal Dissenter sobre este tema, não valida a posição do PAN. Citar pessoas sem lhes perguntar qual a sua posição relativamente ao tema sobre o qual vão ser citadas não parece correto.


Conclusão

A complexidade do tema exige que sejam os especialistas a pronunciarem-se sobre o assunto. Decerto não cabe aos médicos representarem politicamente a população, mas também não cabe aos deputados vestirem a bata e opinarem sobre assuntos técnicos fora da sua competência. Se os partidos pretenderem melhorar o acesso às crianças à pediatria de desenvolvimento, neuropediatria e pedopsiquiatria, são bem-vindos. Se pretenderem melhorar o acesso a consultas de psicoterapia especializadas em PHDA, dificilmente alguém se oporá a essa solução. Se quiserem melhorar o acesso à terapia ocupacional, todos os profissionais de saúde e famílias que querem ajudar estas crianças ficarão satisfeitos.

No entanto, tentar impor por via legislativa restrições ao ato médico, indo contra a ciência existente e as posições da larga maioria dos profissionais que tratam esta perturbação, não parece fazer sentido.


Adaptado de www.scimed.pt

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